
Caro Professor Berghman, antes de qualquer coisa gostaria de vos saudar em nome de todos os professores, expoentes e simpatizantes das lutas de contato do RN, em especial o tão carente Muay Thai. Espero que aproveite da melhor forma sua estadia na Cidade do Sol, como também, desejo que logre uma brilhante exposição desta modalidade de luta, sempre pautado na lógica e na razão.
* Como foi o seu encontro com as Artes Marciais, em especial o Muay Thai? Este encontro foi casual ou por necessidades físicas ou psicológicas? E o quanto tais práticas influenciaram a sua personalidade?
Tinha 7 anos quando comecei a praticar Pencak Silat, arte marcial indonésia. Já morávamos na Holanda e meus pais achavam importante que seus filhos mantivessem sua própria identidade cultural indonésia vivendo no exterior. Os treinos e eventos de Pencak Silat eram encontros de imigrantes indonésios. Treinava judô também, mas na verdade queria treinar Karatê. Mas meus pais não me deixavam com medo de que me machucasse. Eles simplesmente queriam que eu soubesse me defender. Eram os anos 70 na Holanda, lugar conservador e com idéias racistas. Fiz um compromisso com meu pai. Se ganhasse a faixa marrom no judô, ele me deixaria treinar Karatê. Com 15 anos de idade ganhei a minha faixa marrom e no próximo seguinte me matriculei no Karate Kyokushin no Dojo Kokoro em Haja, academia do meu tio Shihan Harry Couzijn. Alguns anos antes tinha encontrado o Mas Oyama, amigo do meu tio, e fiquei muito impressionado com sua personalidade, seu conhecimento e espiritualidade. Por isso fiquei ainda mais determinado a me tornar lutador de Kyokoshin. Os irmãos Gordeau, ex-alunos de meu tio, abriram sua própria academia, a Dojo Kamakura, e em 1982 me mudei para lá. Principalmente porque Kanchu Gerard Gordeau ministrava aulas de Kickboxing-Muay Thai. Treinava Kyokushin pela manhã e Muay Thai à noite, 5 dias por semana, determinado a me tornar um lutador completo. Meu tio sempre me cobrava porque eu tinha trocado o Dojo Kokoro pela Kamakura. Mas essa cobrança me motivava ainda mais. E, do outro lado, também tinha a cobrança de Gordeau, porque eu era o sobrinho do Shinan dele. Aprendi assim a me dedicar e me destacar sob pressão. Na academia éramos submetidos a disciplina marcial, obediência e sacrifício total, como uma seita. Ganhei resistência física e mental e aprendi a nunca desistir. A luta abriu a janela para outros aspectos da cultura oriental. Comecei a me interessar por Budismo, meditação, medicina chinesa e culinária oriental.
* Por que o senhor optou pelo Muay Thai? Algo relacionado ao contexto social e geográfico? Se pudesse retornar ao passado, optarias mais uma vez por esta prática marcial?
Em maio 1976 meu tio me levou para o primeiro evento oficial de Kickboxing na Holanda. Lucien Carbin, Fred Royers, Andre Brillemans, Jan Plas subiram no ringue. Tinha apenas 13 anos e circulava livremente nos vestuários, ouvia as conversas dos treinadores e lutadores, via os aquecimentos e assistia as lutas todas do ‘ringside’ por causa da presença do meu tio. O aspecto heróico da luta e o autocontrole dos lutadores me fascinavam. O Kickboxing me empolgou na hora. Ninguém usava o termo Muay Thai nessa época. Achava que podia me tornar um lutador completo com as técnicas usados no Muay Thai: clinches, cotovelados e joelhadas, o uso de boxe, a rotação do corpo, tudo isso em combinação com Karatê Kyokushin.
Sou filho de imigrantes e sofri bastante preconceito e discriminação na Holanda. Através do Muay Thai consegui inclusão social.
Olhando meu passado como atleta e lutador, com certeza optaria novamente pelo Muay Thai. Sinto que fiz parte de uma grande geração de lutadores ‘holandeses’. Treinamos no anonimato e batalhamos por reconhecimento e alcançamos grandes conquistas.
* Em sua essência, o Muay Thai é uma luta marcial, onde prepara o indivíduo para adversidades diárias que possam vos colocar a vida em jogo ou apenas um desporto para se ganhar fama e dinheiro? Em síntese, para o senhor, há uma distinção entre a luta e o desporto?
No mundo moderno ninguém mais usa o Muay Thai como luta de sobrevivência, na procura por prosperidade e segurança. O Muay Thai evoluiu como todas as outras artes marciais. Mundialmente há regras de combate, protocolos de treinamento, acompanhamento científico, intercâmbio entre equipes. Muay Thai infelizmente tornou se um negócio. Esqueceram a essência, espiritualidade e pureza da luta. Também penso que nem todo mundo que compete quer fama e dinheiro. Muitas vezes é conseqüência natural dos treinos, das lutas e dedicacão.
* Sabemos que o sentimento é algo vivenciado, sentido no íntimo daquele que vive o momento. Nada obstante, o senhor poderia trazer pelo caleidoscópio mental uma experiência nesta modalidade que realmente marcou a sua vida?
É lógico que a obtenção de títulos e cinturões teve impacto. Mas em 1991 passei pela primeira vez um período de 6 meses no campo de treinamento de Den Muangsurin na Tailândia. Hoje em dia os campos são empreendimentos comerciais e os treinos são adaptados. Nessa época os lutadores estrangeiros não eram muito bem-vindos nas academias tailandesas, eram lugares fechados. Fui criado na Holanda, mas como sou indonésio e tenho aparência oriental, sempre naveguei entre esses dois mundos. Também, tailandeses e indonésios se estranham bastante. Então, era muito difícil conquistar o meu lugar e reconhecimento no campo. Cada dia parecia uma disputa por um cinturão. Coisa inimaginável. Depois de 6 meses, casaram uma luta minha em Bancoc e eu só soube no dia que a luta era de 5 rounds de 4 minutos ao invés de 5 de 3 minutos. A luta foi muita dura, mas no 4 round nocautiei meu adversário, o público ficou calado e meu corner chorou de felicidade. Nesse momento, realizei que tinha encontrado o meu lugar, o meu destino.
* É de nosso conhecimento que sua experiência remonta outros Países, inclusive a Tailândia, berço do Boxe Thai. Na sua concepção, o treinamento e lições deste esporte
Para responder sua primeira pergunta, existe uma diferença significante sim entre métodos e didática de treinamento e parâmetros físicos e técnicos no Brasil e na Tailândia. Um exemplo simples: o treinamento com Thaipads (aparadores de chutes) na Tailândia é baseado em explosividade, velocidade e na técnica da rotação do corpo inteiro para liberar energia e deixar o corpo fluir. Poucos atletas brasileiros entendem essa filosofia e usam apenas força muscular e velocidade na perna que chuta. Isso é uma questão de ensinamento. Ninguém sabe clinchar, joelhar e arremessar igual aos tailandeses. É uma arte. Usam a movimentação, a força e a velocidade do adversário. Escutam o corpo do outro lutador durante o clinch. Por falta de conhecimento técnico, o lutador brasileiro geralmente aplica força no clinch para criar espaço para joelhar. O brasileiro Cosmo Alexandre mudou-se para a Tailandia e agora tem uma joelhada perigosa, agora sabe clinchar e seus chutes são mais eficazes. Não acho os métodos do treinamento na Tailândia primitivos. Os treinos são muito mais intensivos e mais focados. Um lutador brasileiro ou‘ocidental’ faz crosstraining. Treina Muay Thai de manhã e faz musculação á noite. No dia seguinte faz 10 rounds de sparring de boxe e muay thai e á noite vai nadar ou faz corrida de intervalo. Assim você cria uma máquina de combate, mas você se afasta da base do Muay Thai. Muay Thai é uma luta complicada e exige uma coordenação motora excelente e dedicação.
* Na sua concepção, o Muay Thai é uma prática aeróbica ou anaeróbica? Durante uma luta os níveis de lactato são muito altos para aqueles que não se encontram na aptidão física adequada?
Muay Thai é uma luta explosiva e, no nível profissional, você luta 5 rounds de 3 minutos. Geralmente somente no primeiro round você tem a oportunidade de estudar seu adversário e adaptar a sua estratégia. Depois disso a freqüência, explosividade, força e velocidade dos golpes e contragolpes mudam o tempo todo durante a luta. Uma prática anaeróbica então. E você deve basear seus treinos nesses fatos.
Se tiver um físico adequado obtido através de treinos, seu corpo será capaz de adiar o momento de acidificação dos seus músculos.
* Crianças e idosos podem praticar o Muay Thai como forma de crescimento saudável e qualidade de vida?
Crianças ainda não possuem estrutura óssea e musculatura desenvolvidas. E o impacto de um golpe ou sua defesa tem conseqüências sérias. O corpo de um adulto tem a capacidade desenvolvida de auto-recuperação, que conserta microtraumas e traumas nos ossos e músculos. Muay Thai para adolescentes somente a partir de 15 anos de idade. Não indico a prática de Muay Thai para um idoso pelos mesmos motivos. O processo de degeneração óssea e muscular traz riscos para o idoso que pratica Muay Thai.
* Como é desenvolvido o trabalho de fortalecimento da tíbia na Tailândia? E as técnicas de joelhos e cotovelos são realmente tão temidas como apresentadas pelo cinema?
A imagem de um lutador chutando bananeira ou coqueiro é coisa de filme. Você precisa endurecer os tecidos que revestem a canela. E dessensibilizar a região da canela e criar mais resistência. O recheio de um saco de pancada adequado é uma mistura de grãos de arroz, areia e raspa de borracha. Borracha para absorver o impacto do chute, areia para aumentar a resistência á dor e arroz para endurecer o tecido. O calejamento é um processo lento e acontece quando se treina diariamente. E são aplicadas massagens para cuidar dos hematomas e outras irregularidades na canela.
O cinema mostra as técnicas de cotovelos e joelhos de uma forma muito exagerada. Joelhadas e cotoveladas voadores existem, mas são muito mais simples e muito menos sensacionais na realidade da luta no ringue. O ator Tony Jaa do filme ‘Ong Bak’ aplica suas joelhadas voadores para convencer seus fãs e empolgar o público no cinema e não para derrubar e finalizar seus adversários e subir no ranking.
* Um lutador profissional de Thai na Tailândia vive bem? Digo o que ganha dá para se manter como atleta e cidadão que chega a constituir uma família?
A vida profissional de um lutador de Muay Thai na Tailândia é curta. Começa a lutar ainda jovem, 12 anos de idade, sem capacete e sem caneleira. Apenas luvas e protetores bucal e genital. Com 22-24 anos de idade ele está no auge da sua carreira, com mais de 150 lutas no seu cartel. As suas lutas sustentam a sua família inteira, colocam comida na mesa, pagam a educação dos seus irmãos e filhos e cuidam da saúde de seus pais. São poucos que alcançam o status de Kiatmonthep ou Buakaw e conseguem manter seu status de astro.
* Como o senhor chegou até o Brasil? E atualmente, mantém o esporte como hobby ou leciona em alguma academia? O nosso País tem chances de ser uma referência nesta modalidade? E as mulheres são bem vistas no Thai?
Aposentei-me da luta em 1997 e comecei a viajar pelo mundo. Voltei para Ásia Sudeste por alguns anos, Indonésia, Tailândia e Malásia. Morei na Costa Rica longe do ‘mundo civilizado’ até 2003. Cheguei ao Brasil pelo Venuezuela. Uma viagem inesquecível de barco seguindo o Rio Amazônia. Decidi ficar, arrumei meus papéis e me radiquei na Ilha de Boipeba-Bahia. Moro em Brasília agora, ministro aulas de Muay Thai na academia Distrito da Luta e preparo lutadores de MMA. Ainda treino
O Brasil tem chances de se destacar no Muay Thai, mas mudanças são necessárias na minha opinião. Muita vezes, um atleta sobe ao ringue com menos um ano de preparação. Depois de 4 ou 5 lutas, ele sobe como semi-profissional e, 2 lutas mais, ele é chamado de lutador profissional de Muay Thai. Mas a realidade mostra que um ‘profissional’ brasileiro não tem o nível de um bom amador ou lutador Classe-B holandês ou tailandês. O caminho para a primeira luta e, finalmente, tornar-se um profissional é longo e exige mais paciência e humildade. Em cada estado brasileiro atuam várias federações de Muay Thai e cada uma tem os seus próprios cinturões e campeões. Percebi que existe muita confusão e politicagem entre as federações. E essa falta de união inibe a elevação a um nível profissionalmente mais aceitável. E o que conta é que o atleta procura sempre o melhor treino...
Mulheres são bem vistas no Muay Thai com certeza. Lutadoras como Lucia Rijker, Annemarie ten Cate, Ilonka ‘Killer Queen’ Elmont, Germaine ‘Iron Lady’ Randamie são prova disso. Todas elas são campeãs mundiais, respeitadas e reconhecidas no Muay Thai masculino.
* Como dever ser a prática do Muay Thai para um neófito?
O professor tem que focar na coordenação motora do seu aluno iniciante, mostrar a lógica por trás dos golpes e a harmonização dos movimentos. Isso sem se esquecer de condicionamento físico planejado para melhorar a resistência combinado com treinamento de técnicas básicas.
* Para finalizar, qual a mensagem que o senhor poderia deixar para todos aqueles que praticam ou admiram o Muay Thai em Natal?
Independente dos seus objetivos ao praticar Muay Thai - recreação, condicionamento físico, competição - sejam humildes, mais disciplinados ainda, e tenham paciência. Lembrem-se de que cada professor é aluno, e cada aluno é professor. Tenham uma mente aberta. Aqueles que querem competir profissionalmente, preparem-se para uma vida solitária cheia de sacrifícios, mas é uma vida excepcional. Estou ansioso para conhecer o Muay Thai em Natal e espero que o meu seminário possa contribuir com o crescimento dos atletas que vão participar.
Ossu !!
Alexandre Magno Sensei.
Um comentário:
É UM PRIVILEGIO SER ALUNO DO MESTRE BEN, UMA PESSOA DE GRANDE CARÁTER,UM MESTRE QUE PUCHA O MÁXIMO DO ALUNO.
SUA TÉCNICA APURADÍSSIMA POR ISSO SUAS AULAS SÃO DIFERENCIADAS...
MESTRE BEM MUAY THAI NA VEIA....
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